domingo, março 21, 2010

Quando sozinho é o bastante

E para lavar a alma entrou de corpo inteiro naquela água. Mergulhou e sentiu todo o frescor. Bebeu e matou a sede de vinte e cinco anos. Deu braçadas e mergulhou mais uma vez. Agora podia tocar o fundo sentir tantas pedras ásperas em suas mãos para lembrar que ainda assim são menos ásperas que as palavras que ouvira por toda a sua vida. E voltando a tona redescobre o ar. Nunca antes havia respirado um ar tão puro.
O lugar era todo deserto e somente o barulho da água era possível ouvir, o silêncio era tão completo que provocava vazio. O melhor vazio de sua vida que, antes, era repleta de brigas e discussões, de guerras de sentimento, de intrigas de rivais, problemas de amadurecimento e, principalmente, insegurança. Como uma pessoa sozinha poderia se sentir tão segura no meio de uma mata, mergulhando em um lago?
De repente um susto toma conta de todo o seu ser. Estava mesmo só e isso poderia ser perigoso, mas a verdade é que não existia perigo maior do que esperar vinte e cinco anos para viver, isso sim, era arriscado demais. Adiar tantas emoções, tantas formas de aprender a viver. Completamente arriscado abandonar um provável grande amor na porta da escola, outro na portaria de um prédio, na saída da faculdade, no estágio, na cidade onde cresceu. Quantos prováveis grandes amores abandonados, trocados por algo mais sufocante que aquela água, o medo.
O medo de perder afetos conquistados e socialmente protegidos e nomeados como mais importantes: “Uma família constituída não deve ser abalada pelos caprichos de um jovem.” E foi assim que cresceu, debaixo da sombra de um grande poder paternalista e egoísta, sentindo medo de até mesmo se pronunciar. E como todos realmente sofreram quando resolveu partir, parecia que as grandes expectativas fizeram o prodígio escapar pelos dedos.
Mesmo fora d’água brincando com a água com uma das mãos, se surpreende sem ar, completamente sem ar e se sufoca. Parece ficar sem firmeza ao procurar olhar em frente e então mergulha mais uma vez. E se livra dos piores pensamentos. E esquece se de tudo admirando a beleza daquelas rochas no fundo da piscina natural. A dor dentro do peito desaparece e neste exato momento tem a certeza que se respirar bem fundo, puxar a água para dentro de si, conseguirá se sentir ainda mais livre. Mas a quanto tempo estou aqui?
Sai da água veste roupas secas que estavam dentro da mochila, monta a bicicleta e pega a trilha de volta para a pacata cidade, a qual acabara de escolher como lar. Reconstruir a partir de agora, fazer o que é preciso para viver sem ter a certeza de que não é o bastante. Já na rua da casinha branca consegue ver um movimento de crianças de casais recém formados.
É a única pessoa solteira de todo o quarteirão: “talvez eu me case ano que vem. Se eu ao menos tivesse uma companhia.” E ao abrir o portão, o pequeno Furreca, um cãozinho vira-lata de dois anos, prova que a melhor companhia está alí. E parece sorrir ao ver uma pessoa tão especial chegar. E já é noite, um banho quente, um chá quente. E amanhã será domingo de páscoa. Dia de voltar para Goiânia. E rever seus pais.