Sentir debaixo dos pés descalços aquela grama foi realmente tranquilizante, como pode uma sensação tão maravilhosa com algo tão... Simples! Que frescor! Isso com certeza nunca aconteceu antes! Pés na grama e caminhando, sentindo as diferenças do terreno. Pés na grama.
Que bom olhar as folhinhas por entre os dedos e tão frias! Um sorriso inevitável parece transparecer essa sensação maravilhosa. O ar, indeciso, fica entre brisa e vento, frescos, com um aroma doce de fruto ou flor toca o rosto e chamar a atenção para além do chão: o horizonte.
À frente uma espécie de varanda, um salão envolto de cortinas. “quero ver de perto”. O lugar está todo tomado pelo sol: “que varanda linda!” parece que a noite jamais tivera a chance de entrar ali. “Quero ver de perto”, “quero entrar”, “quero tocar o tecido, ver o que há lá dentro”.
O tecido delicado, amarelado, fino, dança no ritmo do vento. O lugar todo parece mais uma caixa de vidro, com piso verde. No centro uma mesa rústica e um vaso com flores amarelas e azuis, em todos os tons imagináveis.
“Mas onde estou?!” Olha em volta e ao longe o som de um bip...
O despertador impede de descobrir que lugar era aquele.
Abre os olhos, rola na cama. “AH! Que preguiça, mas já é dia?” trava o despertador, confirma o horário, “07:30!”
Só então percebe que estava dormindo com a cabeça para os pés da cama. Não lembrava se havia se deitado neste sentido, mas não é normal acordar assim, com certeza, não.
- Que dor de cabeça! Que sensação de fraqueza, mas eu não bebi. Ontem foi quarta feira.
Café da manhã, bolo de queijo, leite com café enquanto degusta o preto café, doce e amargo, confere um desenho na TV, escovar os dentes e computador. O projeto precisa ficar pronto hoje: Ensaio sobre a cegueira. Análise do filme, leitura da obra de José Saramago.
A casa estava toda iluminada, mês de abril e que calor!
Um bom banho para refrescar: E se lembra de uma conversa que tivera no dia anterior com uma amiga que afirmou: “- Você não é mais a mesma pessoa, está completamente diferente e distante”. Ora, que a diferença e a mudança incomodam, não é novidade, mas também não é novidade que elas ocorram, pensou.
Almoço com jornal na TV.
- Meu Deus! Meu país, as crianças de lá? Sete de abril de 2011, crianças assassinadas dentro de uma escola em Realengo, RJ. Minha infância não era assim, o Brasil era diferente para as crianças: "A cidade da minha infância tem as portas abertas para a esperança, tem os braços abertos para o amor tem o sol mais lindo ao se pôr e tem a família mais amada do Brasil, a cidade da minha infância tem o céu mais estrelado, tinha príncipe e princesas encantados e as manhãs em cor de anil." Sorriu.
Refletiu sobre o que estava acontecendo na sua terra natal e sobre o que viveu em sua própria infância. Lembrou da avó que já se foi, boneca de pano, bola de futebol, a queda da goiabeira, o primeiro dia de aula, sorvete de morango com cobertura de chocolate, a surra por ter quebrado algo ou batido em alguém, fiscalizou os momentos mais “perigosos” de quando era uma criança e não se lembrou de sequer uma arma.
Atrasou-se para o trabalho, correu. Chegou. Projeto pronto, reunião. Fim do dia. Atravessa a cidade e o pensamento fixo na conversa com a amiga, no sonho, nas notícias do jornal, na proposta de voltar para trabalhar no Brasil. O sinal fecha e as luzes se misturam, entorpecem os olhos, a garganta começa a doer e se lembra do vizinho que se jogou do alto do prédio, caiu na piscina, está em coma, Mike, o rapaz dos sonhos.
A volta para casa parecia interminável. Será que intermináveis eram os pensamentos? Sorri. “Que bom”. “Tomara que não terminem antes de chegar em casa.” “Tomara que nunca terminem, nunca.”
Que sentimento de vazio. Só, dentro do carro, com os pensamentos, lembranças, música, "I'm lonely in London, London is lovely so
O sinal fecha. Uma chuva começa.
“A chuva cai lá fora
Não com a mesma intensidade
que cai aqui dentro.
Dos meus olhos,
Relâmpagos.
Da minha face
Rios que transbordam,
Trombas d'água,
Enxurradas que alagam.
Do meu coração
Trovões que estremecem
as paredes do meu peito.
A chuva cai lá fora.
Mas a tempestade
está aqui dentro.
Da minha alma
ventos a mil por hora.
As minhas mãos
mais geladas que o granizo.
A chuva para
lá fora.
Como toda chuva de verão.
Agora, observo os estragos
Passageiros como a chuva
que caía lá fora
Mas a tempestade aqui dentro
parece eterna.”
Sorri. “Lembrei por inteiro”. Isso continua igual, as tempestades. “Não é fácil mudar, ninguém quer e geralmente as mudanças são forçadas, dolorosas e, mesmo depois de muito sofrimento, podem não ser definitivas faz-se necessário voltar atrás, o que pode ser ainda mais doloroso.” E Cantarola:
“Quando a ida não é boa
A volta não pode prestar
Não tenho medo de seguir
Mas tenho medo de voltar”
Faltam apenas seis quadras. Estou chegando em casa. Pega o celular, busca na agenda, letra “S” do teclado, pronto.
- Alô, Sara? Olha, eu já fui e já voltei tantas vezes nas minhas mudanças. Saiba que a candura, a doçura, o amor, não se foram. Saiba que os cuidados e as preocupações nunca me deixaram. O que acontece é uma necessidade imensa de conter, de proteger a mim e aos que eu amo. Desculpa... Tá ouvindo? Sara?
Quando chega à esquina não para, está olhando para a tela do celular. “Será que a ligação caiu?” Atravessou sem olhar. Um farol ilumina todo o carro. Um som arrepiante de freada. Era um caminhão, carregado de carne, mas disso não foi possível ter certeza. Um baque pôde ser ouvido pelas próximas três quadras. O caminhão tomba para o lado esquerdo e o carro para o lado direito. Um líquido mancha de vermelho parte da pista. O som do carro ainda está ligado e a voz de Cartola, meio rouca, começa:
“Ainda é cedo, amor
Mal começaste a conhecer a vida
Já anuncias a hora de partida
Sem saber mesmo o rumo que irás tomar...”
Respiração difícil. Lembra do projeto, da análise que foi aceita e será publicada. “Uma cegueira branca, leitosa, e rostos opacos a sua frente”. Ou será tudo por causa da luz forte em seus olhos?
“Preste atenção, querida
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida
Em pouco tempo não serás mais o que és”
Curiosos. Ambulância. Viatura. Lembra do sonho que teve na noite passada. “Parece que acenderam todas as luzes”.
“Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho”
Lembra que seu cachorro está no apartamento. Lembra que mora só.
“Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho.
Vai reduzir as ilusões a pó”
Lembra do vizinho, o rapaz dos sonhos. Lembra da varanda do seu sonho. Ele está no hospital mais próximo. Ele está em coma. Lembra da varanda do seu sonho. “É para onde eu irei.”
“Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo,
Abismo que cavaste com os teus pés”.
Kamila de Paula.
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